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Existem no Brasil ao menos 6.000 comunidades que se identificam como quilombos, das quais 478 oficialmente reconhecidas, mas sua realidade e a luta pela titulação das terras passam despercebidas pela maioria. Descendentes dos negros trazidos à força da África lidam com falta de acesso a serviços básicos, assim como no período colonial.

são paulo “Quil om boé a possibilidade de humanizar corpos negros que o colonialismo buscou desumanizar .” É essa resposta menos direta e mais analítica que a historiadora Ana Paula Cruz, 34, dá para a pergunta: o que é um quilombo?

Doutora em história pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e gestora escolar, ela nasceu em Santiago do Iguape, comunidade quilombola da cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, uma das regiões com maior número de agrupamentos do Brasil.

Os quilombos surgiram na época da colonização brasileira como resposta à violência praticada pelos portugueses, e, depois, por seus descendentes,contra os negros que foram trazidos à força para o Brasil, vindos da África. Os primeiros registros deste tipo de formação datam da década de 1570.

Símbolo da resistência negra no período da escravidão, os quilombos contemporâneos sofrem com o legado de desigualdades deixado pelo período colonial. Isso por conta da falta de acesso à terra e a políticas públicas básicas como saúde e educação.

Ainda surpreende uma parte dos brasileiros a ideia de que, em tempos atuais, os quilombos existem. E não são poucos. Ao menos 6.000 comunidades em todo país se identificam assim. Umas já reconhecidas. Outras ainda em busca da oficialização do título do território.

É justamente no Nordeste que está concentrada a maioria dos agrupamentos. São 3.171, considerando tanto os quilombos já oficializados pelogoverno quanto os que ainda buscam reconhecimento. Entre os regularizados, a maioria também está em território nordestino, 176, segundo o IBGE.

Mas os quilombos dos livros escolares são parecidos com os quilombos contemporâneos? Ana Paula Cruz cita a definição dada pela também historiadora Beatriz Nascimento (1942-1995) que serve tanto como ponto de partida para responder à questão quanto como base para suas pesquisas sobre o Vale do Iguape, sua região natal.

“Q ui lomboéu ma vanço,é produzir ou reproduzir momentos de paz. Quilombo é guerreiro, quando precisa ser guerreiro. É também um recuo, se a luta não é necessária. É sapiência. É sabedoria. Uma continuidade de vida. O ato de criar um momento feliz. Mesmo quando o inimigo é poderoso. Mesmo quando ele quer matar você. Uma possibilidade nos tempos de destruição”, descreveu Beatriz, referência no tema.

Cerca de cinco milhões de pessoas entraram no país e foram escravizadas ao longo de mais de 300 anos do regime que só terminou em 1888.

Pessoas vendidas como mercadoria. Jornadas de trabalho exaustivas. Violência. Amputação. Estupro. Privação de liberdade. Castigos. Famílias separadas. Diante deste cenário, em busca de liberdade africanos e negros nascidos no Brasil fugiam. Passaram a se estabelecer em locais de difícil acesso e a formar comunidades.

Além da fuga imediata da opressão, o surgimento dos quilombos também foi afronta. Ajudou, mesmo que lentamente, a inviabilizar o sistema escravocrata. As comunidades davam suporte para rebeliões, incêndios em plantações e resgate de cativos, fatores que ajudaram na busca pela abolição.

Mas os quilombos também surgem após o fim do período escravagista no Brasil. Aquelas pessoas antes escravizadas foram deixadas à própria sorte. Preteridas para trabalhos remunerados, uma das alternativas foi estabelecer-se em engenhos abandonados.

Um exemplo desse processo pós-escravidão ocorreu no próprio quilombo em que a historiadora Ana Paula Cruz nasceu. “As comunidades do Vale do Iguape se formaram no momento de desagregação do sistema escravista”, lembra.

“Não é pensado no conceito clássico de quilombo como espaço de fuga e resistência. Eles [ancestrais] acionaram um dos sentidos de liberdade, que é o sentido de permanência”, afirma.

Segundo ela, as primeiras pessoas negras que chegaram à região eram egressas da escravidão. Com o fim legal, permaneceram nesses territórios, que antes eram fazendas escravagistas. Buscavam uma alternativa para aquele novo momento de vida. Desenvolveram laços de solidariedade e núcleos familiares. Assim como outras comunidades, foram dando origem aos quilombos contemporâneos.

Hoje, Ana Paula não mora mais no quilombo. “Eu precisei sair para estudar e continuei fora para trabalhar”, mas a família toda está lá. “Pensar o direito à educação, como isso, durante tanto tempo, foi negado às populações negras rurais e às comunidades quilombolas”, analisa.

A realidade atual e a luta por titulação de terras dos quilombos contemporâneos são pouco conhecidas e debatidas no país. As origens históricas dessas comunidades formadas por remanescentes de pessoas escravizadas também são.

Os quilombos, no período colonial, não eram isolados, embora estivessem localizados em regiões de difícil acesso. Os quilombolas mantinham contato com comunidades vizinhas. Estabeleceram comércio. E eram avisados sobre a presença de portugueses em busca de foragidos.

Plantavam. Viviam da pesca. Buscavam medicina nas ervas. Muitos reproduziam sistemas aprendidos nos tempos em que moravam na África. Boa parte dessa cultura que se formou naquele período é reproduzida em quilombos hoje em dia.

Embora as pessoas negras fossem a maioria da população do local na época da colonização e tivessem protagonismo nas decisões da comunidade, elas não eram o único grupo social presente. Indígenas fizeram parte de quilombos, assim como mulheres brancas.

“Eram comunidades multirraciais”, explica Luciana Brito, professora de história da Universidade Federal do Recôncavo Baiano. “Se acreditava em um modelo de sociedade na qual todas as pessoas participassem. Diferente do modelo da escravidão.”

Registros da existência de quilombos datam do século 16. O Quilombo dos Palmares, na região do atual estado de Alagoas, foi o mais famoso. “O que tem de genial nisso? É uma sociedade anticolonial, dentro de um sistema colonial, negociando com o sistema colonial”, diz Luciana Brito. Assim, os quilombos usavam os mecanismos do próprio sistema colonial para combatê-lo.

Para a professora, um dos aspectos mais ameaçadores dos quilombos era justamente a organização social, que permitia o convívio mútuo de pessoas racialmente distintas. “Isso em meio a uma sociedade colonial, cristã, patriarcal e escravista.”

Quando pensamos nos quilombos atuais, complementos têm sido usados nas nomenclaturas para tentar dar conta de analisar as especificidades de cada comunidade. Quilombos rurais e quilombos urbanos são alguns desses termos e dizem respeito, como sugerem os nomes, à região na qual estão situados.

Nas últimas décadas também cresceram os aquilombamentos. Casas de cultura criadas para valorizar ancestralidade, dar vazão ao pertencimento social e ajudar na autoestima de pessoas negras, ainda hoje enfrentando preconceitos.

“É pensar a relação passado e presente. É pensar sobretudo essa trajetória de luta e resistência da população negra em experiência de diáspora”, conclui Ana Paula Cruz.

“[Os quilombos] Eram comunidades multirraciais. Se acreditava em um modelo de sociedade na qual todas as pessoas participassem. Diferente do modelo da escravidão Luciana Brito professora de história da Universidade Federal do Recôncavo Baiano.


Autor: Tayguara Ribeiro

Fonte: Folha de S.Paulo

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